"Sou leproso e estou aqui. Não posso fazer muito mais coisas... Já sabem: a carne apodrece-me e cai deixando feridas. Cheiro mal. Se pudessem ver-me, ainda tinha um resto de nariz para vos mostrar. E os olhos, no fundo de uns buracos que têm aumentado imenso. Mas não seria agradável olharem para mim. Nem eu próprio olho para mim: deixei de usar espelho há muito tempo. Não é necessário, aliás, porque os outros leprosos quase todas as manhãs me vão contando as novidades. Acontece, normalmente depois de acordarmos. É que para nós também existe a noite e o dia, e muitas vezes conseguimos mesmo dormir no chão duro destas cavernas. Dão-me os bons-dias e dizem qualquer coisa como: «Olha, pá, já não tens a orelha direita». E a verdade é que nessas ocasiões nos rimos muito. Acho, até, que estamos proibidos de viver nas cidades dos homens porque não querem ver-nos rir. O único riso verdadeiramente puro é o daquele que se ri de uma orelha que caiu. Mas poucos sabem disso. Se caminhássemos pelas avenidas haviam de lembrar-se de que todas as orelhas inevitavelmente cairão. E não é agradável que recordem constantemente a alguém a ameaça cada vez mais próxima de um problema para o qual não possui solução. Nós também não temos solução. Rimo-nos. A solução está em não haver solução. E esta forma divertida de aceitarmos que a vida seja como é, este modo sossegado de cooperarmos com o inevitável, significa para nós uma serenidade que é um tesouro sem preço. Para os outros, somos somente a lembrança desagradável de que não passam, também eles, de leprosos adiados e de futuros cadáveres; de que, sem dúvida, não terão neste lugar o seu paraíso, por mais que façam crescer o saldo da sua conta bancária. Somos um grito em forma humana, um aviso irrecusável, uma censura que inevitavelmente se aloja no fundo das consciências. E, por isso, fomos empurrados para estas cavernas. O que, de resto, não nos incomoda demasiado, pois todo o planeta é, de certa modo, uma caverna. (...) Não querem cruzar-se connosco. Desejam abraçar sem perturbações a voragem alucinante do seu caminho de prazer e vaidade. E viemos para estas cavernas. (...) Mas, do fundo destes buracos, temos um segredo para lhes dizer. Quando, num momento de lucidez, descobrirem que tudo é vazio, venham ter connosco. Quando não souberem como fazer dos filhos homens direitos, passeiem com eles por um cemitério, sentem-se com eles à beira de um doente que sorri no leito que vai morrer, levem-nos aos lugares onde há crianças esfomeadas a brincar, descalças e alegres. Sim, podemos contar-lhes o segredo da alegria, o segredo da bondade das coisas más, o segredo da plenitude que habita as coisas simples."
Paulo Geraldo, in Jornal de Barcelos - 29/4/2009
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